DITEFRON finaliza 1º Ciclo de entrevistas com professor emérito da Sorbonne

Por: Liziane Zarpelon | Postado em: 30/07/2020

O Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais e Espaços Fronteiriços (DITEFRON), que está ligado ao Curso de Geografia da unidade de Jardim da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) realizou a última rodada do 1º Ciclo de Entrevistas Remotas. O convidado da vez foi o professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne IV, Paul Claval, que falou sobre a pandemia.

Claval é considerado um dos renovadores da Geografia na contemporaneidade. Seu interesse pelos campos de geografia cultural, geografia regional, geografia econômica e epistemologia da geografia contribuiu para essa renovação, tornando-o referência obrigatória. É autor de uma vasta obra, com destaque para os seguintes títulos: Espaço e Poder (1978), A Lógica das Cidades (1981), Geografia Cultural (1995), Terra dos Homens (2010), Epistemologia da Geografia (2014), dentre outros. A magnitude de sua obra foi reconhecida pela comunidade acadêmica, em 1996, ao lhe conceder o prêmio Vautrin Lud – o Nobel da Geografia. A trajetória acadêmica de Paul Claval inclui passagens em universidades brasileiras como professor visitante e supervisor de pesquisas de brasileiros na França. Claval recebeu o título de doutor honoris causa pelas Universidades de Genebra, Trieste, Trente, Buenos Aires, Tsukuba, Rome e Montréal. Desde maio de 2019, participa como colaborador do DITEFRON.

DITEFRON – Professor Claval, é um grande prazer para nós a oportunidade deste diálogo. Como o senhor está atravessando esse momento?

Paul Claval: Tive a sorte de não ter contraído a Covid-19. Mas a França foi atingida com força suficiente, especialmente, nas áreas de fronteira com a Alemanha e a Suíça e na região da Grande Paris. Como em toda parte, as principais vítimas são as pessoas idosas: alguns dos meus velhos amigos morrem pela doença [...]. Morando sozinho há anos, o confinamento quase não mudou minha vida. O desconfinamento (Le déconfinement – termo em francês para o fim da quarentena) está ocorrendo, até o momento, sem um retorno ofensivo da doença. As atividades e a animação retornam lentamente. Como todos os anos nesta temporada, estou instalado em uma região turística do sudoeste da França e percebo que os visitantes são, atualmente, muito menos numerosos do que nos anos anteriores.

DITEFRON – Que lição podemos tirar do processo de globalização diante dessa pandemia?

Paul Claval: Ninguém sabia nada sobre a Covid-19. A doença demonstrou ser muito mais contagiosa do que os vírus corona conhecidos anteriormente - embora tenha se mostrado menos grave que o SARS. A lentidão do governo chinês em revelar a gravidade da doença que acabara de ser identificada em seu território explica por que outros países foram pegos de surpresa. A participação da China na fabricação de medicamentos e produtos de higiene - máscaras em particular - piorou o efeito surpresa, pois o confinamento reduziu drasticamente a produção desses itens na China, numa época em que sua demanda estava explodindo em toda parte no mundo. Desde os anos 1980, a remoção das barreiras alfandegárias acelerou consideravelmente a globalização. Como muitas empresas industriais desapareceram em vários países, seus governos não podiam mais contar com fabricantes locais para produzir máscaras e medicamentos necessários para a luta contra o vírus. A desaceleração momentânea da atividade na China tornou o problema dramático: a França entendeu que ficaria sem máscaras no final de janeiro e encomendou da China; elas só chegariam dois meses e meio depois! Como disse, o novo vírus se espalha muito mais rápido que os vírus corona já conhecidos. Na ausência de qualquer tratamento efetivo, a única medida capaz de impedir a disseminação é manter distância suficiente entre as pessoas. Esse fator não tem a ver com a globalização isoladamente, mas desempenha um papel crítico na rapidez com que o vírus se espalha. As viagens aéreas, sejam para negócios ou turismo, aumentaram desde a metade do último século. Entre os primeiros casos observados na China e aqueles que ocorreram na Europa, apenas um mês se passou, mas há indícios de que o vírus já estava circulando na Europa desde dezembro de 2019. Obviamente, a velocidade da propagação da pandemia deve muito à mobilidade de longa distância das populações na atualidade. A vulnerabilidade das grandes aglomerações urbanas também se deve à densidade de viagens diárias: há grande promiscuidade no transporte público, seja ônibus, trem ou metrô! Em muitas indústrias, os trabalhadores estão muito próximos uns dos outros e são expostos a contatos permanentes. A situação é a mesma em várias atividades terciárias, as quais o teletrabalho permitiu resolver o problema; em dúvida, poderia ter se espalhado muito mais rapidamente nesse setor. A globalização, portanto, teve um papel no impacto da pandemia de três maneiras: (1) na velocidade de sua propagação; (2) devido a vulnerabilidade de populações que são muito móveis no seu dia a dia e frequentemente moram ou trabalham em ambientes que aglomeram, o que explica o impacto particularmente forte da pandemia em grandes metrópoles e em indústrias onde os trabalhadores estão posicionados próximos uns dos outros; (3) na capacidade de produzir, no local, os equipamentos e as ferramentas necessárias na luta contra a Covid-19. É óbvio que o papel da globalização tem sido considerável. Mas quando se trata de doenças, a natureza de bactérias e vírus também é muito importante. Digo isso porque, na época da gripe espanhola, ainda não havia viagens aéreas transcontinentais. O primeiro caso foi relatado em março de 1918, no estado americano do Kansas. No início do verão de 1919, tal pandemia foi considerada cessada. Mas em um ano matou entre 20 e 50 milhões de pessoas em todo o mundo. Nesse caso, a globalização da doença foi extremamente rápida.

DITEFRON – Nós não ocupamos os laboratórios essenciais da descoberta da cura para essa doença que acometi muitos em vários pontos do planeta, mesmo assim temos um papel importante. Qual é o lugar das ciências humanas nesse debate?

Paul Claval: De fato, pesquisadores de ciências humanas - e entre eles, os geógrafos - não lidam diretamente com a doença. Não é deles que depende o conhecimento do vírus, sua evolução, as mutações que ele pode conhecer. Não são eles que procuram moléculas que possam parar a doença ou diminuir seus efeitos. Não são eles que estão trabalhando no desenvolvimento de vacinas, únicas capazes, no estágio atual do conhecimento, de conter o novo vírus. O trabalho epidemiológico, essencial para entender as condições sob as quais o contágio ocorre, é em grande parte uma pesquisa em geografia médica [no Brasil, Geografia da Saúde] e que nos lembra o papel que os profissionais da saúde desempenharam na formação dessa parte da nossa disciplina. Max Sorre, o mestre da geografia médica francesa, devia muito ao trabalho epidemiológico da escola francesa de medicina tropical [...]. O surgimento da geografia médica americana ocorreu após 1945, quando Jacques May, médico francês do Instituto Pasteur em Hanói, mudou-se para os Estados Unidos onde trabalhou no âmbito da Sociedade Geográfica Americana. Os epidemiologistas estabelecem os protocolos de distância entre os portadores de microrganismos e aqueles que os podem receber. Eles integram em suas análises o que se sabe sobre a dinâmica do contágio do agente microbiano ou viral considerado. Eles também usam meios estatísticos sofisticados. E, no conjunto, suas pesquisas são, em essência, geográficas. O geógrafo Olivier Lazzarotti, em uma comunicação que acaba de dedicar ao tema da Covid-19, ele relembra essa proximidade entre ciências sociais, geografia e epidemiologia. Permita-me citá-lo:

O trabalho que os geógrafos podem realizar sobre a disseminação de doenças ou sobre ambientes infecciosos, sendo a contaminação endêmica ou epidêmica, pode lançar luz acerca de certos aspectos da dinâmica atual da Covid-19. A pandemia de Covid-19 sacode profundamente as sociedades atingidas, revela suas fraquezas, destaca suas faltas, coloca em evidência o divórcio que geralmente existe entre as estruturas políticas e as populações. Destaca também a capacidade de reação dos grupos populares, o papel das iniciativas vindas de baixo, a capacidade de intervenção mediada pela solidariedade local ou comunitária. É nesta área que as ciências sociais, em geral, e a geografia humana, em particular, podem ser de grande ajuda. O primeiro problema que a crise destaca é o da incapacidade de muitos sistemas políticos de lidar com ela. Por que os padrões até então dotados não se adequavam à situação única com a qual se deparavam? A incapacidade de agir eficaz e rapidamente face à nova situação aponta para: (i) a inabilidade para lidar com a chegada de informações de emergência aos setores de gestão; (ii) as opções religiosas, ideológicas ou políticas que impediam de levar a situação à sério; (iii) a ineficácia administrativa no campo da saúde; (iv) as intervenções que se deparavam com os preconceitos da população ou provocavam desconfiança entre aquele que se manifestavam contrários. O segundo problema é o das ações dos órgãos mediadores da emergência: os serviços de saúde (serviços de emergência, hospitais, lares de idosos, dispensários etc.), as estruturas administrativas regionais e locais e a sociedade civil (igrejas, sindicatos, associações, movimentos políticos) [...]. O terceiro problema é o da opinião pública, a circulação de informações, a produção de notícias falsas, o papel das organizações comunitárias. Isso nos leva a propor questões mais amplas... É verdade que as democracias reagiram com menos efetividade à emergência de saúde do que os regimes autoritários, aqueles que, em particular, assumem a forma de democracia iliberal? Qual o papel do Estado e da sociedade civil no desenvolvimento de respostas à pandemia?

DITEFRON – Alguns pesquisadores defendem que a pandemia de Sars-Cov-2 é o evento que inaugura, definitivamente, o século XXI. O senhor acredita em um novo mundo para o novo século? Quais os caminhos possíveis e as limitações diante de um novo pacto civilizatório?

Paul Claval:A pandemia de Covid-19 está abalando todos os regimes e questionando alguns princípios a partir dos quais as sociedades modernas foram construídas. Inclusive, a convicção de que a primeira das liberdades foi a do movimento sofre esse questionamento. Tal convicção, levou a aceitar todas as formas de mobilidade, todas as formas de troca favorecidas pelo movimento e a tornar o liberalismo um dogma. Ainda assim, o sentimento de que era essencial questionar parte de nossas ações, remodelar nossas instituições e levar em conta novos objetivos vem se afirmando em uma parte da sociedade há décadas. O primeiro questionamento foi ecológico, notavelmente a partir da década de 1950, com a publicação de Silent Spring [em português, Primavera Silenciosa], de Rachel Carson, que chamou a atenção para a destruição contínua da biodiversidade. Foi reforçada no início da década de 1970, quando, como resultado do Relatório Meadows, percebemos os limites do crescimento. Os efeitos globais causados ??por nossas maneiras de agir e o aquecimento global resultante têm, desde os anos 80, dado crescente urgência a esse questionamento. O segundo desafio é ideológico e político. É o [desafio] da sociedade ocidental [...]. Seus nacionalismos exacerbados levaram aos desastres que são as duas guerras mundiais; o progresso do qual se orgulha é repleto de ameaças e desastres; sua missão civilizadora era apenas uma maneira de disfarçar o imperialismo brutal que praticava. A opinião pública não ocidental também se tornou cada vez mais crítica: para os intelectuais no mundo dominado, o desafio não é mais substituir a versão socialista pela versão liberal e capitalista do projeto ocidental. É denunciá-lo em todas as suas formas em nome dos próprios princípios do Ocidente ou em nome de fundamentalismos religiosos ou ideologias emergentes. A pandemia de Covid-19 não é, por si só, responsável pela aspiração muito ampla por um novo mundo que se manifesta hoje, mas reúne todos os movimentos que rejeitam a ordem atual. Federação não significa unificação: as críticas que se levantam contra o status quo são múltiplas e divergentes. A Covid-19 empurra as pessoas a se dispersarem para evitar o risco de contágio, enquanto a ecologia prega a formação de áreas de densidade alta o suficiente para serem equipadas com redes de transporte público, por exemplo. A pandemia certamente abre uma era de contestação da ordem existente, mas as forças que se expressam com mais intensidade são, parcialmente, contraditórias. Estamos entrando em um período de efervescência e agitação social e política, mas calma e harmonia não são para amanhã.


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