UEMS/Jardim: Grupo de pesquisa DITEFRON entrevista especialista sobre a perspectiva geográfica da COVID-19

Por: Gisleine Rodrigues | Postado em: 15/06/2020

Intervenção artística sobre a COVID-19 por Leonardo Mareco em Campo Grande - MS

Com o tema perspectiva geográfica da pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2), o Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais e Espaços Fronteiriços (DITEFRON), coordenado pela professora Juliana Luquez, no âmbito do Curso de Geografia da Unidade Universitária de Jardim, entrevistou Denis Castilho, doutor em Geografia, professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Redes e Produção do Território (GéTER). Castilho também é o editor-chefe da revista Ateliê Geográfico e tem se dedicado a estudar e pesquisar temas como modernização, redes técnicas e produção do território.



DITEFRON: Para você enquanto professor e pesquisador, como tem sido esse momento?

DENIS: Um momento que desafia nossa capacidade de entender a rapidez das transformações. Compreender esse turbilhão é um desafio complexo porque o movimento do mundo, da vida e dos acontecimentos é sempre mais rápido do que nossa capacidade de prevê-lo. Mesmo assim, é fundamental que o professor fale, se posicione e problematize esse movimento. Em tempos de propagação de falsas notícias, o exercício da reflexão se torna profundamente necessário.


DITEFRON – Em artigo recente, você defendeu que a pandemia tem uma dimensão global e uma escala urbana. É possível afirmar, então, que a pandemia do novo Coronavírus pode revelar mais do modo de organização da sociedade do que das causas naturais de sua deflagração, em si?

DENIS: Apesar de sua característica genética e do modo como um conjunto de fatores possibilitou o surgimento do Sars-CoV-2, o vírus também carrega a insígnia de nosso tempo, das redes e dos diferentes espaços por onde tem se disseminado de maneira tão rápida e, em muitos casos, tão dramática. É um vírus que deixa ainda mais evidente o tipo de sociedade que o gestou, ao mesmo tempo que escancara a incapacidade dessa mesma sociedade de enfrentar a pandemia. Se, por um lado, a difusão do vírus revela os principais fluxos da economia globalizada, por outro também revela a patente estrutura degradante da urbe contemporânea. A ausência de cobertura de serviços de saúde e de infraestruturas básicas como saneamento, é apenas um dos sintomas do drama. O modo como o vírus alcança tanto as periferias das cidades como as diferentes porções do território, também revela um problema muito anterior à pandemia, mas que, ao se defrontar com situações como essa, expõe ainda mais as fraturas e as contradições da sociedade moderna.


DITEFRON: No Brasil, o estado de Mato Grosso do Sul tem o menor número de casos e óbitos de acordo com os dados oficiais do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado de Saúde. É também um dos estados com o menor índice de isolamento social, medida apontada e defendida por autoridades sanitárias como uma das mais eficientes na contenção do contágio enquanto não temos uma vacina. Você acredita que a dinâmica territorial e a rede urbana ainda muito rarefeita, apesar da produção e circulação voltados para o mercado externo, estejam influenciando na velocidade de propagação do vírus, diferentemente do que temos visto em áreas metropolitanas em diversos pontos do território brasileiro?

DENIS: A difusão do vírus realmente guarda estreita relação com os principais eixos e fluxos de circulação, seja na escala planetária, seja nas escalas do cotidiano. Contudo, é importante sublinhar que essa configuração é momentânea. No caso do estado de Mato Grosso do Sul, o modo como a sua rede urbana está estruturada – especialmente como está articulada com outras redes do país, realmente não deixa de influenciar os números atuais da doença. Mas é importante ponderar este dado porque o sistema de funcionamento das redes não obedece aquela tradicional hierarquia, bastando mencionar os circuitos de produção e de circulação do estado, já mencionados na pergunta. A ausência de medidas de prevenção ou a baixa taxa de afastamento social pode resultar em um crescimento explosivo de casos. Isso aconteceu em diversas cidades do mundo onde o poder de difusão do vírus foi subestimado. Em todos os casos, não se pode desconsiderar as subnotificações e as medidas que cada cidade vem adotando (ou deixando de adotar), a exemplo de decretos, operações emergenciais, suspensão de atividades e adoção de medidas de biossegurança. A despeito disso, a explicação a esta questão demandaria uma análise mais detalhada para cada região do estado.

 

DITEFRON: A mídia vem alimentando a expectativa de um “novo normal”. Você acredita que esse “novo” será suficiente para promover uma descontinuidade na manutenção das desigualdades e no atual padrão de acumulação?

DENIS: Não acredito. O que se anuncia é justamente o inverso. Um dado que já apresenta crescimento e que tende a aumentar é justamente o da quantidade de novos pobres. Em países africanos e latinos, sobretudo, o resultado da pandemia será pior. Na escala da geopolítica, as corporações, com seu oportunismo de sempre, farão ainda mais pressão aos Estados. O sistema de pilhagem, de espoliação e de acesso aos ativos públicos, além de aumentar, influenciará uma escalada totalitária em diversos países, a exemplo do Brasil. O modo como isso se reverbera no cotidiano pode ser traduzido em uma sociedade de controle ainda mais eficiente. Soma-se a isso os novos padrões de exploração do trabalho e de relações pessoais, agora, mais do que nunca, mediados pelos sistemas de aplicativos e pela inteligência artificial. É por isso que o novo normal, por mais que apresente mudanças aparentes, trará o aperfeiçoamento de muito do que já é e está.


DITEFRON: Qual é o papel da Geografia na compreensão desse contexto e de u
ma potencial ruptura?

DENIS: A Geografia se torna uma ferramenta indispensável neste momento. Digo isso por dois motivos principais. Primeiro, pelo potencial de seus recursos teórico-conceituais e de seus recursos técnicos. A construção de estratégias demanda a compreensão dos territórios e do modo como as regiões, as redes e as cidades se articulam entre si. Impossível enfrentar uma pandemia como essa sem considerar a produção do espaço (seja na escala intra ou interurbana), as áreas prioritárias e a complexa trama dos fluxos, da circulação, das fronteiras, etc. O mapeamento também se constitui como ferramenta indispensável tanto no conjunto das representações do movimento da pandemia como no sistema de monitoramento e de adoção de medidas preventivas. O segundo motivo tange o ensino e a prática docente. Além de problematizar o mundo a partir da pandemia e a pandemia a partir do mundo e dos lugares, é necessário criar artifícios de valorização da ciência e da pesquisa. A cultura da pesquisa e da produção de conhecimento deve ser trabalhada em todas as fases do ensino para que um absurdo como o que vemos neste momento, não seja admitido. O ataque que o próprio governo faz à ciência não deixa de evidenciar uma doença ainda pior do que a Covid-19, aquela que corrói gerações e que degrada um país inteiro. Por isso, apesar da complexidade do momento e da confusão que ele pode gerar, há uma potência que se desperta quando praticamos o diálogo, o questionamento, as trocas, a docência, o apoio e a reflexão. A ciência, a arte e o protagonismo, nesse sentido, se constituem como importantes instrumentos para iluminar a clarividência e a nossa capacidade de agir.


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